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5 de out. de 2012

Três Passos, uma cidade que foi torturada pela ditadura

As histórias da ditadura e da sua política de repressão e de terrorismo de Estado voltaram a ser contadas no Brasil a partir da criação da Comissão Nacional da Verdade e de comissões estaduais e comitês da sociedade comprometidos com o resgate da memória daquele período. A ação da ditadura em cidades do interior do país é particularmente desconhecida. O economista Calino Pacheco Filho, do Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça, conta a história da cidade de Três Passos, no noroeste do Rio Grande do Sul, onde centenas de pessoas foram presas e torturadas, em função da resistência à ditadura na região, no início dos anos 1970.

Porto Alegre - A criação da Comissão Nacional da Verdade teve como um de seus efeitos imediatos a criação, por todo o país, de comissões estaduais e comitês da sociedade civil unidos por um mesmo objetivo: auxiliar no trabalho de investigação dos crimes da ditadura e de reconstrução da memória perdida no período dos chamados “anos de chumbo”. Essas comissões e comitês já vêm trabalhando concretamente para resgatar histórias perdidas e sonegadas pela ditadura e seus aliados.

Um exemplo disso é o Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça, criado este ano em Porto Alegre a partir de uma aliança entre ativistas da área de Direitos Humanos, sindicalistas da Federação dos Metalúrgicos, movimentos sociais como MST e MPA, o Levante Popular da Juventude e estudantes de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde sua criação, há cerca de quatro meses, em articulação com outras entidades, vem promovendo uma série de atos públicos em Porto Alegre e no interior do Estado em defesa do resgate da memória do período da ditadura e da punição dos autores de crimes como torturas e assassinatos.

Integrante do Comitê, o economista Calino Pacheco Filho destaca a opção feita por criar um espaço com uma coordenação colegiada, sem permitir contaminações com questões partidárias e eleitorais sempre presentes em anos eleitorais. O objetivo do Comitê, esclarece, é dar apoio às comissões da verdade, tanto a nacional como a nacional.

“Essas comissões, por terem sido criadas pelo Executivo, tem algumas limitações. Elas não podem pedir, por exemplo, a revisão da Lei da Anistia, por problemas de confronto de poder (com o Judiciário). Nós entendemos que só com pressão da sociedade civil e dos movimentos sociais e que elas podem avançar um pouco mais. Nosso papel é esse. Dar respaldo, mas também tentar fazer o que as comissões oficiais não podem. A partir dos limites dessas comissões, nós tentamos avançar”.

O terrorismo de Estado em Três Passos
Uma das propostas que o Comitê Popular fez à Comissão Estadual da Verdade foi promover uma audiência pública na região de Três Passos, onde foi realizado um escracho silencioso em frente ao Hospital de Caridade para denunciar que em maio de 1970 centenas de pessoas foram presas e torturadas no local. Outra proposta, feita à Secretaria Estadual de Educação, é a de colocar nos currículos das escolas de ensino médio a história da ditadura e do terrorismo de Estado. “Nós estamos elaborando uma cartilha com esse tipo de conteúdo, com uma linguagem bem acessível e usando muita ilustração, para circular principalmente entre os estudantes de ensino médio”.

O ato realizado dia 28 de agosto no município de Três Passos foi um marco na recente história do Comitê. Foi a primeira manifestação realizada pelo Comitê no interior do Estado. E deve ser a primeira de muitas. A história da ditadura e da repressão nas cidades do interior é quase que totalmente desconhecida por parte da população. E, ao contrário do que alguns podem pensar, traz histórias de violência, arbítrio e perversidade tão graves como aquelas ocorridas nos grandes centros do país.

“Três Passos tem uma história interessantíssima”, observa Calino. “A Coluna Prestes passou por ali. Ela nasceu em Santo Ângelo, passou por São Luiz Gonzaga, foi acossada pelas tropas governistas de então e avançou na direção de Três Passos. Ali, a Coluna ficou encurralada de novo e submetida a seguinte alternativa: ou entrar na Argentina, ou ir em direção a Santa Catarina. A Coluna optou pelo segundo caminho e quanto chegou na divisa com Santa Catarina, houve um combate onde morreu o Tenente Portela, que era uma das principais lideranças do movimento juntamente com Luis Carlos Prestes”.

Essa é uma área muito importante do ponto de vista estratégico, assinala ainda Calino, porque ela une três países – Argentina, Uruguai e Paraguai – que fazem divisa com três estados brasileiros – Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Além da passagem da Coluna Prestes, mais tarde, em 1965, há o episódio da tentativa de constituir um foco de guerrilha na região, liderada por Jeferson Cardim e pelo MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário, ligado a Leonel Brizola). Em 1965, juntamente com um grupo de combatentes, a maioria formada por ex-sargentos cassados em 1964, tomou o quartel de Três Passos e passou a transmitir, pela rádio da cidade, as notícias da ação e convocando a população a lutar contra a ditadura. “Foi uma ação muito estabanada. Eles sairão de caminhão rumo a Santa Catarina e acabaram sendo presos no Paraná. Houve um confronto onde inclusive morreu um sargento do Exército. Eles foram todos presos e o Jeferson pegou dez anos de cadeia”.

A conexão com o Vale da Ribeira
Há um terceiro momento, prossegue Calino, marcado pela instalação de uma base da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) naquela região:

“O Vale da Ribeira era uma área de treinamento para enviar o pessoal para a região de Três Passos. O Lamarca viria para cá com os guerrilheiros treinados do Vale da Ribeira. A VPR organizou uma empresa de pesca ali, em Esperança, na região da Barra do Turvo (na época, Esperança era um distrito de Três Passos), e estava montando toda uma estrutura na região. Do outro lado do rio, há uma mata muito extensa que vai da Argentina até o Paraguai. Hoje ela já está desmatada em alguns pontos, mas ainda tem pontos de mata muito densa. Essa era uma área importante do ponto de vista estratégico para a guerrilha. Mas aí caiu o Vale da Ribeira e um terço do pessoal foi preso. Os outros dois terços, incluindo o Lamarca, conseguem furar o cerco e fogem. O Vale da Ribeira caiu porque caiu alguém da direção da VPR que conhecia o Vale e sabia também sobre o que estava sendo feito aqui na região de Três Passos”.

Calino prossegue o relato:

“Os militares se ligaram então que havia essa conexão, embora ainda não tivessem maiores detalhes sobre ela. No início de 1970, cai um pessoal da VPR aqui no Rio Grande do Sul e, com isso, os agentes da repressão obtêm detalhes sobre a área de Três Passos. Então, desce do Rio de Janeiro o hoje tenente-coronel reformado Paulo Malhães, que organizou a Casa da Morte (centro de detenção clandestino instalado no município de Petrópolis, Rio de Janeiro). Malhães vai para a região de Três Passos, monta um centro de tortura no quartel da Brigada e prende o pessoal da VPR e seus simpatizantes. Como a VPR tinha montado uma peixaria, eles tinham muitas relações na cidade. Muita gente, que apenas tinha contatos comerciais com a peixaria, foi presa e apanhou muito sem saber de nada do que estava acontecendo. Segundo os relatos das vítimas, esse Malhães ficava dias sem dormir, só torturando e humilhando. De dia, havia o interrogatório sem pau, ou sem muito pau, e de noite comia o pau solto”.

“Um vereador do MDB na época denunciou na Câmara que estava acontecendo em Três Passos a noite de São Bartolomeu (uma alusão ao massacre de protestantes ocorrido na França em 1572). Os gritos dos torturados eram ouvidos na cidade. O MDB tinha dois vereadores na cidade, este que fez a denúncia e o Reneu Mertz, que era militante da VPR. O Reneu também foi preso e torturado. Mais tarde, ele foi eleito prefeito e a praça central da cidade leva hoje o seu nome. Ele tem irmãs, filhas e netos morando em Três Passos. Os militares prenderam também e torturaram o comandante da VPR na região, Roberto Fortini, que inclusive participou do ato que realizamos agora”.

Uma história desconhecida para as novas gerações
Para resgatar a memória desses acontecimentos, o Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça promoveu um escracho no local que funcionou como centro de tortura – que era um quartel da Brigada e hoje é um hospital. Depois do escracho silencioso realizado no hospital, os manifestantes seguiram em caminhada até a praça central de Três Passos, onde ocorreu um ato público. A reação da cidade foi um pouco de surpresa, mas não de hostilidade, conta Calino.

“As novas gerações não conhecem esses episódios, que não aparecem nos livros de história. E a cidade ficou muito traumatizada pelo que aconteceu. Mesmo assim, conseguimos fazer uma manifestação muito expressiva, com mais de 200 pessoas na praça. Nós vamos fazer um relatório sobre essa história e passar para a Comissão Estadual da Verdade e para a Comissão Nacional da Verdade”.

Nos próximos meses, dezenas de histórias como esta provavelmente virão a público por todo o país. A criação da Comissão da Verdade instalou um espaço de debate e ação na sociedade que parece não ter volta.

Solução de conflitos por meio da violência diminui nas prisões paulistas

28/09/2012
Por Elton Alisson
Agência FAPESP – Nos últimos anos, os conflitos nas prisões paulistas passaram a ser resolvidos mais por meio do uso da palavra do que pela via da violência física.
O fenômeno, até então restrito ao universo carcerário, começou a extrapolar os muros das prisões e a se disseminar por outros territórios da cidade onde há maior presença e contato com egressos do sistema penitenciário, como nas periferias.
A constatação é de um trabalho de doutorado realizado no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP.
Alguns resultados preliminares do estudo foram apresentados na 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), realizada em julho em São Paulo.
De acordo com Karina Biondi, autora do estudo, a partir do início dos anos 2000 começou a ser observada uma crescente valorização da palavra, em detrimento do uso da força física, para resolução de conflitos no interior das cadeias paulistas, o que fez com que o uso de violência se tornasse o último recurso e seja legitimado apenas após passar por um intenso debate.
A mudança estaria relacionada a um movimento chamado de “revolução interna”, que começou a ocorrer na metade dos anos 2000 no Primeiro Comando da Capital (PCC), quando Biondi começou a estudar a maior e mais organizada facção criminosa existente no Brasil, surgida na década de 1990 em penitenciárias paulistas.
Na época – quando Biondi realizou estudo de mestrado sobre a estrutura política e hierárquica do PCC, que resultou no livro Junto e misturado: uma etnografia do PCC–, a facção criminosa adicionou a palavra “igualdade” ao seu lema, que antes era “paz, justiça e liberdade”, como o do Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro.
Com isso, a questão da igualdade passou a se espalhar por toda a dinâmica de relações entre os “irmãos” – como são chamados os membros batizados do PCC –, eliminou estruturas hierárquicas e postos como o de “generais” e fez com que antigas práticas, como a violência sexual e as agressões físicas, se tornassem menos frequentes no interior das prisões paulistas.
“A adição da ‘igualdade’ ao lema do PCC fez com que surgissem enunciados como ‘é de igual!’ ou ‘cadê a igualdade?’ não só entre os ‘irmãos’, mas também entre toda a população carcerária. Esses enunciados evitam manifestações hierárquicas e de violência física”, disse Biondi à Agência FAPESP.
“É claro que as manifestações hierárquicas aparecem a todo o momento entre eles. Só que existe o enunciado de igualdade para tentar evitar que se cristalizem lideranças ou relações de mando e obediência, porque se ‘é de igual’ ninguém pode mandar em ninguém. E a violência também está sempre no horizonte, mas ela não ocorre mais sem que tenha ocorrido um debate”, disse.
Em função dessa nova dinâmica de relações entre os membros do PCC, um criminoso que manda ou outro que obedece seriam mal vistos pelos outros companheiros.
O criminoso que obedece ao mando de outro acaba por ser considerado como “lagarto”. Já quem manda é visto como “malandrão”, que é uma figura que remete ao período anterior do PCC, quando os presos vendiam celas, papel higiênico e eram comuns os estupros no interior das prisões.
“Essa ideia de igualdade foi aparecendo aos poucos nas situações mais triviais das relações de convívio entre eles, como na decisão de quem poderá dormir em camas e quem terá que dormir no chão em cela com superlotação”, exemplificou Biondi.
“A criação de critérios para solucionar uma situação como essa passa pela questão da igualdade, que é reivindicada por eles sempre que se acha que uma decisão não foi muito justa ou não foi ‘de igual’, que é uma expressão que até alguns estrangeiros encarcerados em unidades prisionais em São Paulo e que não falavam português aprenderam”, disse.
Materialidade pela palavra
Segundo Biondi, essa nova dinâmica nas relações entre os encarcerados em unidades prisionais em São Paulo instaurada pelo PCC, baseada no uso e valorização da palavra – em detrimento da violência física para solucionar os conflitos –, fez com que a capacidade de ser um bom orador se tornasse uma espécie de pré-requisito para um presidiário se tornar membro da facção.
Isso porque, além de ser a única “arma” que os “irmãos” utilizam para negociar situações de conflito entre detentos, com os diretores de presídios e nas comunidades onde estão presentes, a palavra também é a forma pela qual o PCC se materializa no interior e fora das unidades prisionais.
“Como o PCC não existe como uma estrutura com instâncias hierárquicas, não há nenhum símbolo que possibilite identificar quem é ‘irmão’ e quem não é e ostentar essa posição não é bem visto, o Comando só existe e se materializa quando é falado ou chamado”, disse Biondi.
Uma das situações que Biondi presenciou e registrou durante o estudo foi uma briga em uma comunidade em que um membro do PCC foi chamado para apartá-la.
Ao se aproximar do grupo envolvido na briga, uma das pessoas perguntou quem ele era, ao que ele respondeu “aqui é o PCC”. Ao se identificar dessa forma, a briga parou e as pessoas que participavam da confusão se dirigiram até ele para que mediasse o conflito.
“Ali ele era o portador da palavra e falava pelo PCC porque, se não há instâncias hierárquicas às quais se possa recorrer, os ‘irmãos’ têm a responsabilidade de ser o Comando nas palavras que proferem, que precisam ser ditas de forma muito precisa porque, caso contrário, podem ser acusados de não seguir os ideais do PCC e sofrer consequências, como a exclusão”, disse Biondi.
A legitimidade dos ‘irmãos’ estaria justamente em conseguir instaurar o PCC por meio das ideias de igualdade e da centralidade do uso da palavra para solucionar conflitos que hoje também estão bastante dissolvidas na dinâmica das periferias de São Paulo.
“Essa prática do debate extrapolou a dinâmica criminal e se espalhou nas periferias da cidade, conforme outros pesquisadores também vêm registrando. No futebol de várzea, por exemplo, situações que antes geravam brigas são hoje resolvidas por meio de debates”, disse Biondi.